Direitos Humanos à Luz da Globalização?
1. Introdução
No ano em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) perfaz
sessenta anos, olhamos para esse conjunto de regras que deveriam proteger o
que foi considerado como padrão mínimo da dignidade humana com alguma
nostalgia.
A vida quotidiana diz-nos que os tempos mudaram. Não só em Lisboa, na
Estremadura ou em Portugal, mas em todo o mundo. Outra coisa não seria de
esperar. Tudo muda.
Aquilo que menos se esperava era que o mundo mudasse tão depressa. Todas
as alterações estruturais, culturais, organizacionais e comportamentais
desencadeadas, desde há sessenta anos até hoje, culminaram naquilo a que
hoje chamamos de Globalização e que ninguém sabe muito bem o que quer
dizer. Por outro lado, a incapacidade comum de descrever o seu significado é
ultrapassada pela quantidade e diversidade de sensações causadas pelas
novíssimas situações trazidas pela nova Era.
Traz-nos aqui, a estas linhas, o desafio de olhar para o mundo de hoje, a partir
dois pares de olhos diferentes, para assim identificar alguns pontos de mudança
e questionar aquilo que se manteve insensível à evolução.
No primeiro tópico trataremos de identificar os tipos de abalos que os Direitos
Humanos, em especial a liberdade de circulação e o princípio da igualdade, têm
sido objecto em resultado dos mais recentes impulsos da Globalização.
Em seguida, iremos procurar apalpar os limites da Globalização, aí onde o
essencial da dignidade humana esteja a ser comprometida.
Finalmente, apresentaremos breves comentários e sugestões práticas para a
adaptação recíproca da Globalização aos Direitos Humanos e dos Direitos
Humanos à Globalização.
2. Direitos Humanos à Luz da Globalização?
2.1 Novos desafios dos Direitos Humanos
O vôo que sugerimos, neste ponto, obriga-nos a fazer um prévio check-in
conceptual sobre Direitos Humanos e Globalização. De seguida passaremos os
olhos pelo free shop, de modo a, abusando de alguma liberdade, identificar os
choques e os empurrões perpetrados na prática, por uma e outra faceta da
realidade. Será, nesse ambiente de correria, que entraremos na nave que nos
levará a atravessar os céus dos tempos modernos.
A primeira questão que se coloca é a de saber, afinal, o que são os Direitos
Humanos. Ora, sem pretendermos ser nem teóricos nem definitivos, recordamos
apenas que os Direitos Humanos são formulações normativas que visam a
protecção do essencial da dignidade humana e que ela é a mesma
independentemente do seu titular. Estes direitos têm assento em vários
instrumentos, tais como: a DUDH, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos (PIDCP), Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e
Culturais, as Convenções de Genebra, Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas Discriminação contra as Mulheres, a Convenção sobre os Direitos
das Crianças, etc.
Não será demais relembrar que, apesar de a natureza jurídica da DUDH se
reconduzir a uma mera resolução da Assembleia-geral das Nações Unidas
(RES/AG/217/A, de 10 de Dezembro de 1948), o seu valor é não só muito
superior, mas praticamente inquestionável, no quadro do regime internacional de
protecção de Direitos Humanos. Por outro lado, a sua aplicabilidade poderá
causar-nos algumas dores-de-cabeça. Não deixaremos de tratar deste
problema.
O segundo conceito que nos salta à vista é o de Globalização. Não nos
comprometemos a defini-lo em profundidade, desfazendo os múltiplos nós que o
constituem, mas tão-só a abordá-lo como um todo. E fazêmo-lo do seguinte
modo: o fenómeno da Globalização aparece-nos como um processo de
crescente interpenetração de Estados, mercados, comunidades e pessoas
individuais, informação e normas1 (Brysk, 2002). O facto de ser extremamente
genérico, complexo e dinâmico, leva-nos a atribuir-lhe o carácter de real, em
contraposição à natureza ideal dos Direitos Humanos.
Depois de sermos revistados de alto a baixo, é já, com o bilhete validado na
mão, que entramos no free shop do aeroporto da Portela, apinhado de gente e
de produtos de todas as partes do mundo. No entanto, figuram como
predominantes nas prateleiras os produtos portugueses, com excepção dos
perfumes.
Neste patamar, interessa-nos compreender que choques e que empurrões
resultam do jogo de cintura entre Direitos Humanos e Globalização, quem são
os actores e que dinâmicas desenvolvem entre eles, não disfarçando um
especial destaque para os movimentos sentidos em território português.
1 Brysk, Alison, “Globalization and Human Rights”, University of California Press, 2002.
Não deixaríamos de chamar a atenção para o facto de que o que é transversal,
quer aos Direitos Humanos quer à Globalização, são as pessoas,
independentemente da origem, do género, da etnia, da origem, da
nacionalidade, do local de residência, da opção religiosa e política, da condição
económica e social, ou da orientação sexual. Estamos a tratar de um assunto
que afecta todas as pessoas no mundo em que vivemos. Estamos em sede do
princípio da igualdade, para o bem e para o mal.
Se, por um lado, podemos olhar com algum orgulho para a quantidade,
diversidade e âmbito de acção de instrumentos e organismos internacionais que
visam proteger os Direitos Humanos (Alto-Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos, Alto-Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados, Tribunal Penal Internacional, Conselho de Direitos Humanos das
Nações Unidas, mais de 25000 Organizações Não Governamentais constituídas
em todo o mundo), reflectindo e conferindo maior controlo sobre o seu respeito,
por outro, sabemos que os ataques e as violações a esses direitos são hoje
mais sofisticadas do que no imediato pós-Segunda Guerra Mundial. Hoje, são, a
maior parte das vezes, da mais distinta natureza os fenómenos que colocam em
causa os Direitos Humanos. Enunciamos, por exemplo, as catástrofes
ambientais resultantes de fortes alterações climáticas, como o avanço das areias
do deserto Sahara ou a multiplicação dos tornados na região do Golfo do
México. Mas estas novas dificuldades manifestam-se outras vezes através da
violência humana. Para não recuarmos muito no tempo, bastará abrir um jornal
gratuito e espantarmo-nos com a violência igualmente gratuita que atravessa a
região do Darfur, no Sudão, ou o Quénia, a fazer lembrar o Ruanda.
Para além destas realidades, que empurram populações inteiras para lá das
fronteiras dos seus países de origem ou de residência, outras se apresentam,
não tanto como boas ou más, mas como desafiantes do convencional. Atentos
àquele que é por muitos considerado como o cerne da Globalização – o
mercado financeiro e comercial -, não poderemos deixar de realçar alguns riscos
e oportunidades que desabrocharam.
Perante o aparente cenário de ocidentalização do mundo, poderíamos ficar com
a ideia de que hoje se é mais livre para circular livremente e para também de
forma livre escolher o local de residência. Contudo, é hoje também mais fácil de
se cair nas mãos de uma rede de tráfico de pessoas ou de exploração laboral
quando se procura uma oportunidade nas sociedades ditas desenvolvidas. E
isso tanto se passa dentro da União Europeia, como no Norte de África ou no
Sudeste asiático. Tal como é mais fácil esbarrar na vedação de arame farpado
em Melilla, às portas da Europa, no Norte de Marrocos. Será, naturalmente para
uns, mais fácil navegar na Internet e procurar trabalho num país distante ou
simplesmente comunicar com a família. Para outros, essa possibilidade está
cada vez mais distante.
Também governos e empresas, e mesmo organizações intergovernamentais ou
não governamentais, se esforçam diariamente por uma adaptação mais eficaz e
eficiente às novas exigências do mercado global, seja através da regulação da
emissão de dióxido de carbono para a atmosfera, ou pela supervisão ou criação
de sistemas bancários internacionais, seja através da abertura de sucursais em
países diferentes do da sede social da empresa, ou pelo divulgação de relatórios
sobre o transporte ilegal de suspeitos de terrorismo.
Porém, a par da perspectiva transnacional, a incidência nacional dos fluxos
migratórios, independentemente da origem, também têm a sua importância.
Talvez seja o ponto mais decisivo.
Apesar de não verem fronteiras, é dentro dos Estados que os Direitos Humanos
e a Globalização dançam. Esse é o seu palco, o seu free shop. Aí, a
Globalização entra-nos em casa, nas nossas prateleiras, invadindo-as de
produtos diferentes, com outras cores e cheiros, resultado da produção de mãos
desconhecidas e máquinas que amanhã estarão desactualizadas. A
Globalização existe quando pelos nossos ouvidos passa música brasileira,
espanhola ou americana, projectada por um rádio produzido na China. Ou
quando vemos um filme de Manoel de Oliveira na nossa televisão japonesa! A
Globalização está por todo o lado, muitas vezes nem nos damos conta. E os
Direitos Humanos, vêm atrás?
Os Direitos Humanos, felizmente, já cá estavam, reconhecidos e concretizados
pela Constituição da República Portuguesa (CRP).
Contudo, será isso suficiente? A resposta está nos desafios que o mercado
mundial coloca ao mercado nacional – se é que ainda existe -, seja no acesso
ao emprego, seja no acesso aos cuidados básicos de saúde ou à educação.
Como se gerem hoje as escolas em que se falam mais de 30 línguas distintas?
Como é aproveitada essa diversidade? Estarão os/as docentes preparados/as?
Está o próprio sistema de ensino habilitado a ensinar todos os alunos e alunas,
no respeito do princípio da igualdade ou da equiparação? Um cidadão
paquistanês indocumentado pode ser atendido numa urgência de um hospital
público? O que pode fazer uma cidadã senegalesa, vítima de uma rede de
tráfico de pessoas e de exploração laboral para se livrar dela e como se irá
integrar na sociedade de acolhimento? Por que não há-de poder votar para as
eleições autárquicas um cidadão russo, que resida legalmente em Portugal há
15 anos?
E essa insuficiência nota-se quando o princípio da igualdade (art. 13º da CRP)
ou o da equiparação (art. 15º da CRP), que é seu irmão, falham. E falham
sempre que o Estado ou qualquer agente particular, cidadão ou empresa,
discriminam arbitrariamente.
A Globalização vem oferecer oportunidades de mudança. Algumas delas têm
elevados custos associados, muitas vezes injustos, outras vezes letais.
Chegou o momento de deixar o free shop e embarcar na nave, onde as regras
quase são palpáveis. Mundando de tom, anunciamos que para velhas doenças,
velhas terapias.
2.2 Velhos limites da Globalização: a protecção dos Direitos Humanos
Globalização não é desresponsabilização
O fenómeno de globalização não pode, no entanto, estar isento de limites
e responsabilidades.
Com todos os benefícios que apresenta e as vantagens que poderão
emergir, a globalização não deixa porém de revelar problemas, problemas estes
que devem ser prevenidos ou – quando já existam – resolvidos pela comunidade
internacional, nas suas várias esferas de acção (internacional, nacional, regional
e local).
As principais críticas que se têm feito ao fenómeno da globalização têm
sido, grosso modo, relacionadas com o facto desta estar a ser feita sem grande
consideração pelos direitos daqueles que não dispõem de meios (económicos
ou outros) para fazer valer os seus interesses face aos dos seus principais
actores (Governos ou grandes empresas multinacionais) que, devido à sua
maior influência, procuram atingir os seus fins muitas vezes sem respeitar os
padrões mínimos de direitos que a todos são concedidos.
Daí se explica o crescente fortalecimento e mediatismo do movimento
anti-globalização, que despontou com os eventos que virtualmente eclipsaram a
Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio que teve lugar em
Novembro de 1999 na cidade de Seattle, Estados Unidos da América.
Mas, é importante reiterar, teoricamente não se tornaria necessária a
existência de um movimento de oposição a este fenómeno a partir do momento
em que estes actores principais reconheçam e verdadeiramente respeitem a
existência de limites às suas acções, limites esses que não precisam de ser
criados: existem já e têm um nome, Direitos Humanos.
Os Direitos Humanos como garantia
Chegados a este ponto, torna-se necessária a delimitação do conceito
“Direitos Humanos”. Dissemos já que estes são padrões mínimos de direitos,
mas são muito mais que isso.
Não existindo uma definição concreta e oficial do que são “Direitos
Humanos”, há todavia um entendimento geral sobre alguns dos elementos que
os compõem, mesmo que por vezes surjam divergências quanto ao seu
conteúdo em concreto.
Assim, sabemos por exemplo que estes se fundam na “dignidade inerente
a todos os membros da família humana”2, protegendo-os incondicionalmente,
independentemente “de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião
política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de
qualquer outra situação”3, o que equivale a dizer que são direitos conferidos aos
seres humanos apenas por serem isso mesmo…humanos.
Mas sabemos ainda outra coisa, sabemos que este elenco de direitos é
invocável não só perante o Estado mas também entre particulares,
consubstanciando um efeito directo vertical e um efeito directo horizontal,
respectivamente.
Deste modo, um indivíduo tanto pode exigir a outrem que respeite o seu
direito à vida, não atentando contra ela, como o pode fazer perante o Estado,
cujo dever de respeito pela vida dos seus cidadãos se divide em duas vertentes:
a obrigação de não o matar4 (“respeitar”)5 e a obrigação de criar condições para
que terceiros não o matem ou, no mínimo, que quem o mate seja punido
(“garantir”)6.
Assim, no contexto da globalização, esta possibilidade de invocar os
direitos não só contra o Estado como contra as acções de terceiros torna-se
2 Preâmbulo da DUDH.
3 Art. 2º DUDH
4 Com algumas limitações, como a prevista no art. 6º/2 PIDCP.
5 Art. 2º/1 PIDCP.
6 Idem.
especialmente importante, na medida em que nesta as entidades privadas têm
uma grande relevância.
Havendo um relativo consenso quanto a estas características dos Direitos
Humanos, o seu conteúdo tem levantado maior polémica, mesmo quanto
àqueles direitos cuja natureza universal parece indubitável: o direito à
integridade física, por exemplo, é interpretado por uns como impedindo todo e
qualquer tipo de agressões, por outros como permitindo a sua limitação por
parte do Estado (justificando-se assim as penas que envolvam castigos
corporais) e por outros inclusivamente como admitindo a sua violação por parte
de particulares.
Ora, é precisamente por não existir um elenco taxativo de quais são os
Direitos Humanos e por faltar uma determinação concreta do seu conteúdo,
mesmo para os que universalmente se aceitam como tal, que se deve proceder
a uma análise ad hoc sempre que exista um conflito de direitos.
Vejamos, pois, dois exemplos paradigmáticos de como os Direitos
Humanos podem limitar o fenómeno globalizante.
O direito à livre circulação
Uma das principais características do mundo globalizado é a maior
relevância do direito à livre circulação, que se encontra consagrado não só no
art. 13º da DUDH7, como – em moldes análogos – no art. 12º do PIDCP8 e nos
arts. 33º/1 e 44º da CRP9, entre outros.
Mas este direito não subsiste per se. Isto é, não se pode simplesmente
conferir o direito a entrar e circular livremente no território de determinado
Estado, sem que paralelamente se criem condições dignas para a(s) pessoa(s)
que o venha(m) a exercer. Torna-se, pois, necessária a consagração de outros
direitos, por forma a proteger quem se encontre nessa situação especialmente
vulnerável. Maior vulnerabilidade justifica maior protecção.
Um exemplo primordial de direito que deve ser concedido aos migrantes é
o consagrado no princípio da igualdade que, mais uma vez, não se encontra
plasmado apenas no art. 13º da CRP10, como também no já citado art. 2º da
DUDH ou no art. 2º/1 do PIDCP11. Este principio contém em si mesmo um direito
essencial à equiparação entre todos os seres humanos, no tocante ao exercício
de direitos, que surge, sem dúvida, de um dos pilares dos Direitos Humanos, a
não discriminação.
Mas este não é um direito absoluto, existindo situações em que um
tratamento diferenciado se justifica, o que vai aliás de acordo com a formulação
7 “1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um
Estado. 2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito
de regressar ao seu país”.
8 “1. Todo o indivíduo legalmente no território de um Estado tem o direito de circular livremente e de aí
escolher livremente a sua residência. 2. Todas as pessoas são livres de deixar qualquer país, incluindo o
seu. 3. Os direitos mencionados acima não podem ser objecto de restrições, a não ser que estas estejam
previstas na lei e sejam necessárias para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou a
moralidade públicas ou os direitos e liberdades de outrem e sejam compatíveis com os outros direitos
reconhecidos pelo presente Pacto. 4. Ninguém pode ser arbitrariamente privado do direito de entrar no
seu próprio país.”
9 “Art. 33º 1. Não é admitida a expulsão de cidadãos portugueses do território nacional. (…); Art. 44º 1. A
todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do
território nacional. 2. A todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito
de regressar.”
10 “Art. 13º (Principio da igualdade) 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais
perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou
isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação
sexual.”.
11 “Art. 2º 1. Cada Estado Parte no presente Pacto compromete-se a respeitar e a garantir a todos os
indivíduos que se encontrem nos seus territórios e estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos
reconhecidos no presente Pacto, sem qualquer distinção, derivada, nomeadamente, de raça, de cor, de
sexo, de língua, de religião, de opinião política, ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou
social, de propriedade ou de nascimento, ou de outra situação.”
do Prof. Jorge Miranda, que entende que este principio consagra a obrigação de
“tratamento igual de situações iguais [e] tratamento desigual de situações
[substancial e objectivamente] desiguais”12. Assim, enquanto que certos direitos
– como por exemplo o direito à presunção de inocência, consagrado no art.
32º/2 CRP13 – devem ser sancionados de igual forma, outros há – como os
direitos de participação política – que não o serão, na medida em que
pressupõem características específicas para o seu exercício.
Este último exemplo não surge por acaso; a limitação ao exercício de
direitos políticos, prevista nos números 2 e 3 do art. 15º da Constituição é dos
raros exemplos de consagração constitucional expressa de uma excepção à
regra da equiparação entre nacionais e estrangeiros, mesmo que ainda seja
possível a criação de novas limitações através de lei ordinária.
Assim, de acordo com estas normas, será absolutamente proibido o
acesso de estrangeiros “aos cargos de Presidente da República, Presidente da
Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Presidentes dos tribunais supremos
e o serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática”14.
Quanto a restantes direitos de participação política, surge uma tripartição:
os direitos atribuídos aos cidadãos de Estados de língua portuguesa com
residência permanente em Portugal (art. 15º/3 CRP), os direitos conferidos a
qualquer estrangeiro residente em território nacional (art. 15º/4 CRP) e aqueles
de que beneficiam apenas os cidadãos dos Estados Membros da União
Europeia residentes no nosso país (art. 15º/5 CRP).
Sairia fora do âmbito desta comunicação a explanação de quais direitos
são atribuídos a qual categoria de estrangeiros, bem como a definição do seu
conteúdo, mas não deixa de ser relevante mostrar as razões para esta
tripartição.
12 Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora
13 “Art. 32º (…)2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação (…)”
14 Art. 15º/3 CRP.
Esta prende-se, relativamente aos cidadãos de Estados de língua
portuguesa, com os “laços privilegiados de amizade e cooperação”15 com estes
países, enquanto que no tocante aos cidadãos de Estados Membros da União
Europeia a justificação provém do conceito de cidadania europeia inicialmente
consagrado no art. 8º do Tratado de Maastricht, conceito esse que tem como um
dos corolários a plena capacidade eleitoral passiva e activa (i.e., a possibilidade
de eleger e ser eleito) para os órgãos próprios da União, independentemente do
Estado Membro onde residam.
Entende-se assim a razão pela qual alguns direitos são exclusivamente
reservados aos portugueses, outros poderão ser atribuídos a certas categorias
de estrangeiros e outros são conferidos de igual modo, independentemente da
sua cidadania. Não se trata de uma violação discriminatória dos Direitos
Humanos mas sim de estabelecer um “tratamento desigual para situações
desiguais”16.
O tráfico de seres humanos
Do outro lado da balança, o tráfico de seres humanos é, sem dúvida, uma
das faces mais infames do fenómeno da globalização.
Fenómeno nada recente – basta pensar na escravatura – o tráfico de
seres humanos tem, nos últimos tempos tomado proporções verdadeiramente
assombrosas, com a Organização Mundial do Trabalho a considerá-lo como a
segunda industria ilícita mais lucrativa, movimentando cerca de trinta e dois mil
milhões de dólares por ano17.
15 Art. 7º/4 CRP.
16 Miranda, Jorge e Medeiros, Rui; op. Cit.
17 Relatório do Director Geral: “A Global Alliance Against Forced Labour: Global Report Under the
Follow-up to the ILO Declaration on Fundamental Principles and Rights at Work”, disponível em
http://www.ilo.org/global/What_we_do/Publications/Officialdocuments/lang--en/docName--
KD00012/index.htm
Os traficantes aproveitam-se da falta de controlo e das maiores
facilidades concedidas quanto à circulação de pessoas (nomeadamente dentro
do espaço Schengen, em que Portugal se insere) e, com isso, conseguem mais
facilmente deslocar pessoas que angariaram (ou, muitas das vezes, literalmente
raptaram) em países com maiores carências, forçando-as a trabalhar, em
regimes de quasi-escravatura, onde agressões físicas e psicológicas, aliadas a
extorsão de dinheiro e documentos são prática corrente.
Mas felizmente a maior consciencialização e mediatização destas
situações tem tido vantagens significativas, encorajando a comunidade
internacional a agir, nomeadamente através de medidas legislativas que regulem
esta matéria por tanto tempo ignorada, como a Convenção do Conselho da
Europa relativa ao Tráfico de Seres Humanos, entrada em vigor no início de
2008.
Neste sentido, temos em Portugal um caso paradigmático, na medida em
que o regime previsto pelos artigos 109º e ss. da Lei 23/2007, de 4 de Julho, não
existia no anterior regime de “entrada, permanência, saída e afastamento de
estrangeiros”, o Decreto-Lei 244/98, de 8 de Agosto.
Trata-se aqui, mais do que uma perseguição aos violadores (essa a cabo
do Direito Penal, e especificamente do art. 160º do Código Penal), de uma
protecção das vítimas “de infracções penais ligadas ao tráfico de pessoas ou ao
auxílio à imigração ilegal”18, às quais é concedida autorização de residência no
território nacional “mesmo que tenha[m] entrado ilegalmente no País ou não
preencha[m] as condições de concessão de autorização de residência”19,
quando e enquanto “seja necessário prorrogar a permanência do interessado em
território nacional, tendo em conta o interesse que a sua presença representa
para as investigações e procedimentos judiciais”20, a vítima “mostre vontade
clara em colaborar com as autoridades na investigação e repressão do tráfico de
18 Art. 109º/1 da Lei 23/2007.
19 Idem.
20 Art. 109º/2 a) da Lei 23/2007.
pessoas ou do auxílio à imigração ilegal”21 e “tenha rompido as relações com os
presumíveis autores das infracções”.22
Estamos aqui perante um claro exemplo de protecção legal de vítimas de
um dos efeitos mais nefastos da globalização: as vítimas de tráfico vêm os seus
direitos à liberdade e à livre circulação violados (já que esta pressupõe que a
circulação é, precisamente, livre) mas a comunidade internacional vem protegêlos,
com medidas como as aqui mencionadas que, embora não previnam
totalmente futuras violações, lhes devolvem a dignidade inerente à sua condição
humana, permitindo-lhes recomeçar a sua vida de uma forma livre e com uma
realização plena dos seus direitos.
Pensar globalmente, agir localmente
Por aqui se vê que, se por um lado a globalização pode ampliar o elenco
de violações de direitos humanos, por outro poderá ajudar, e muito, na solução
destas e outras violações.
De facto, a protecção internacional dos Direitos Humanos é fruto não da
globalização no sentido em que a temos vindo a entender, mas ainda assim de
uma conjugação de esforços a nível internacional para que, através de um
diálogo em conjunto, se possam estabelecer os padrões básicos de respeito
pela dignidade humana.
Assim, temos na Organização das Nações Unidas e noutras organizações
internacionais verdadeiros fóruns de encontro de culturas e vontades onde
esses standards são apresentados de um modo mais geral, por forma a
poderem ser aceites e aplicados por todas as comunidades nacionais, cabendo
depois aos Estados particularizar essas normas consoante as suas realidades
nacionais, seguindo uma lógica de pensar globalmente, agir localmente.
21 Art. 109º/2 b) da Lei 23/2007.
22 Art. 109º/2 c) da Lei 23/2007.
Por fim, não convém menosprezar o papel verdadeiramente essencial que
tem a sociedade civil e, mais especificamente, as Organizações Não-
Governamentais na implementação concreta destes direitos. São elas que têm
um contacto mais próprio com as realidades locais, são elas que dispõem de
mais meios e conhecimentos técnicos para proteger quem mais precisa e,
muitas das vezes, são elas que mobilizam tanto o Estado como particulares a
agir em favor do outro.
3. Conclusões
Vimos ao longo desta breve exposição que globalização e Direitos
Humanos são conceitos interrelacionados: limitam-se e influenciam-se
mutuamente.
Demos o exemplo de como o princípio da igualdade deve caminhar lado a
lado com a liberdade de circulação, por forma a facilitar a protecção dos
migrantes enquanto um dos sectores mais desprotegidos da sociedade, e
demos ainda o exemplo de como uma ruela escura da chamada “aldeia global”23
tem vindo a ser iluminada pela comunidade internacional que, apercebendo-se
do agravamento do fenómeno do tráfico de seres humanos, encetou um
movimento de protecção às suas vítimas e perseguição aos seus perpetradores.
Tal como a evolução passada provocou estas situações, novos desafios
surgirão com o evoluir do fenómeno da globalização.
Uma tendência recente prende-se com o mundo laboral: enquanto as
grandes multinacionais transferem as suas produções para países menos
desenvolvidos, onde salários e condições laborais são bastante inferiores,
permitindo reduzir os custos, o desemprego e a instabilidade social vão-se
alastrando no mundo dito desenvolvido.
23 Termo inicialmente cunhado pelo sociólogo canadiano Marshall McLuhan, na sua obra “The médium is
the message”, publicado em 1964.
Problemas vão surgindo também quanto aos direitos de propriedade
intelectual. Um dos traços distintivos da globalização, senão o mais distintivo
mesmo, é a forma como – com a rede de comunicações actual – a informação é
partilhada em tempo real, com muitos direitos a serem frequentemente postos
de lado. Existem já hoje conflitos entre os direitos de livre acesso à informação e
de os direitos dos autores de peças artísticas, mas – com a evolução da rede de
comunicações, que cada vez mais permite a partilha de ficheiros maiores em
muito menos tempo e com grande facilidade, muito mais problemas parecem vir
a despontar.
Como é que estes e outros desafios serão transpostos? O futuro o dirá,
mas decerto que todos nós teremos um papel a cumprir nessa equação. A
globalização não afecta só os Estados e a economia, afecta sobretudo as
pessoas e as suas vidas.
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